2 de agosto de 2011

É possível permanecer insensível?


É fundamental que o indivíduo seja percebido, não na perspectiva isoladora de um sujeito, mas como parte interessada de uma relação.




JOSÉ JOÃO NEVES BARBOSA VICENTE



Em sua condição natural, o homem não suporta ver o sofrimento do outro com indiferença, mesmo sendo o outro um animal de outra espécie. Ninguém é insensível ao enfrentar o face a face de uma presença.
O Filósofo Chinês Mêncio (pinyin Mèngzǐ, Wade-Giles Meng Ke, literalmente “Mestre Meng”), pseudônimo de Ji Mèngkē e seguidor do confucionismo, autor das obras traduzidas para o latim e o frances por Seraphin Couvreur (Cathasia e Les Belles Lettres) e para o inglês, por James Legge (The Chinese Classics) afirmou que qualquer um que vê uma criança quase caindo num poço é tomado por um temor violento e se precipita para salvá-la (II, A,6). Essa atitude, para Mêncio, não tem a intenção de se obter as boas graças dos pais da criança, nem para atrair os elogios dos vizinhos ou dos amigos, nem mesmo para evitar uma má reputação. Diante do sofrimento do outro, diante da infelicidade do outro, a reação é espontânea. O gesto para socorrer é incontrolável.
Esta situação revela, no fundo, uma conduta absolutamente desinteressada, na qual o individual é ultrapassado. É a própria existência que se insurge em favor do outro. É algo que nenhuma razão é capaz de contestar. É, como disse Mêncio (VII, B, 31), o sentimento de humanidade. O que significa dizer que, para todo homem, há alguma coisa que, no seio da infelicidade do outro, não poderia deixa-lo indiferente e suscita uma reação. Ele não consegue permanecer em repouso diante de tudo o que acontece de mau aos outros. A reação diante do sofrimento do outro deve ampliar, estender, propagar descontroladamente, pois ela é suficiente para fazer reinar a paz no mundo.
É fundamental que o indivíduo seja percebido, não na perspectiva isoladora de um sujeito, mas como parte interessada de uma relação. Diante do sofrimento do outro, a reação se explica na interação que se estabelece entre o eu e o outro, a incitação que, provindo do outro e se difundindo sobre minha afetividade, logo suscita minha reação. A emoção que a caracteriza é pois uma emoção, cujo poder de abalar, no meu interior, escapa ao meu interesse tanto quanto à minha reflexão. Portanto, é deste fenômeno que vem a iniciativa, e não do eu como instancia isolada, esta é a razão pela qual, antes mesmo de poder me conter, sinto-me precipitado para fora de mim. O eu individual não é um substrato-sujeito, por isso não preciso perguntar como sair de mim; o outro não é para mim, um objeto diante da consciência, sendo assim, não preciso perguntar como posso identificar-me com ele. O fenômeno se produz entre nós. Nós nos comunicamos, no fundo de nós, pela existência. Somos ambos ligados nela.



É em nome dessa existência comum que eu reajo. O que nos une, em contrapartida, é nossa participação comum na existência, esse fluxo da vida, que nos atravessa e nos faz vibrar. A reação diante do sofrimento do outro é imune a toda má consciência assim como a toda miserabilismo; nela não está subentendido nenhum mal original, nem alimenta nenhuma complacência em relação à dor. Ela não é uma fraqueza. Mas ao surgir diante de algo que ameaça o outro, esta reação nos lembra imediatamente nossa comunidade de existência, ela reativa entre nós este laço que é a vida.



Filósofo, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e Editor da GRIOT – Revista de Filosofia.




FONTE: JORNAL DO TOCANTINS - EDIÇÃO DE 02 DE AGOSTO DE 2011.

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