2 de junho de 2011

Mito da neutralidade da ciência e a fé filosófica e científica


A ciência, como fenômeno social, não está isenta de certa tendência à personalização. Diferente em alguns aspectos das demais atividades produtivas, o domínio técnico e de conhecimentos específicos faz do cientista um indivíduo que centraliza poder por estar dotado de metodologia para a compreensão da realidade e por concentrar técnicas que possibilitam o domínio sobre a natureza.




Adorno e Horkheimer (1985) afirmam que o mito já é esclarecimento. Na era da quantificação, a ciência (resultado do pensamento iluminista) esconde a barbárie por meio de discursos fundamentados numa suposta neutralidade, além de mascarar interesses econômicos, estando supostamente desvinculada de tendências ideológicas ou políticas. Revestida da afirmação da neutralidade "a ciência ocupa hoje o lugar do Verbo Divino. A casta dos cientistas substitui a hierarquia eclesiástica como elemento mediador entre a palavra superior e a coletividade humana" (TRAGTENBERG, 2004, p.64).



O entendimento de Tragtenberg em relação à ciência não deixa de ser uma crítica à tendência de dogmatizar a ciência e de elevá-la comparativamente às demais formas de mitologização. Dessa forma, Tragtenberg é mais Marx e menos Weber, pelo menos nesse quesito. Assim, tal como Marx, que vê na ciência uma concepção iluminista na maior parte, Tragtenberg acredita na ciência como força progressista, potencial e esclarecedora, pois proporciona aos homens maior poder sobre a natureza, contribuindo para o direcionamento do destino dos mesmos.
Apesar disso, Tragtenberg não se ilude com ela, pois sabe da perversidade da burocracia e como ela é capaz de retirar a autonomia dos indivíduos e dos grupos organizados, aspecto pelo qual Weber está presente na crítica da ciência burocratizada. Assim, se Tragtenberg, por um lado, não concorda com o sentido de "neutralidade axiológica" presente em Weber, por outro, recusa a apologia da ciência, sobretudo, recusando o otimismo dos que "louvam a ciência – isto é, a técnica de controlar a vida baseada na ciência – como o caminho para a felicidade" (WEBER, 2003, p.177).
A ciência, como fenômeno social, não está isenta de certa tendência à personalização. Diferente em alguns aspectos das demais atividades produtivas, o domínio técnico e de conhecimentos específicos faz do cientista um indivíduo que centraliza poder por estar dotado de metodologia para a compreensão da realidade e por concentrar técnicas que possibilitam o domínio sobre a natureza.
Apesar disso,

a importância da ciência para a humanidade não se encontra vinculada ao papel dos cientistas. Estes, na maioria das vezes, restringem-se ao papel de novos sacerdotes à procura de rebanho para ser cuidado. Tragtenberg sabia e procurava reafirmar constantemente que os saberes não se restringiam à ciência, que esta não ocupava uma posição superior ante os demais saberes e que tampouco teria condições de disciplinar a todos. (PASSETTI, 2001, p.106)

No entendimento de Tragtenberg, a ciência é mais uma forma de saber, que se torna dominante porque é apropriada e utilizada pelas classes dominantes, efetivando-se, além disso, como principal instrumento técnico no incremento produtivo, no processo de circulação das mercadorias, no ato de consumo e no fomento ideológico necessários para intensificar a relação produção-consumo. A neutralidade anunciada, portanto, está camuflada. Mesmo os apontamentos de Weber em relação aos limites da ciência, não deixam de ser criticados por filósofos ainda mais radicais (no sentido de ir à raiz) em relação ao papel da ciência na contemporaneidade. Entre esses filósofos, destaca-se Mészáros:

Weber justifica sua "análise científica tipológica" a partir de sua pretensa "conveniência". Sua cientificidade só existe, porém, por definição. De fato, a aparência de "cientificidade tipológica rigorosa" surge das definições "inequívocas" e "convenientes" com que Max Weber sempre empreende a discussão dos problemas selecionados. Ele é um mestre sem rival nas definições circulares, justificando seu próprio procedimento teórico em termos de "clareza e ausência de ambiguidade" de seus "tipos ideais", e da "conveniência" que, segundo se diz, eles oferecem. Além disso, Weber nunca permite que o leitor questione o conteúdo das próprias definições nem a legitimidade e validade científica de seu método, construído sobre suposições ideologicamente convenientes e definições circulares "rigorosamente" autossustentadas. (MÉSZÁROS, 2007, p.72)




A crítica de Mészáros a Weber caracteriza-se pela sua natureza ideológica. O entendimento de "tipo ideal" manifesta a tentativa de absolver a ciência de qualquer interferência de ordem econômica ou pessoal. A suposta ciência neutra existe como uma representação idealizada, mesmo que conceitualmente haja uma circularidade criada pelo próprio Weber para "purificá-la". A tentativa de criar uma ciência neutra, sem influência dos interesses ou vieses que contaminem seus pressupostos de neutralidade, é tão dogmática quanto a tentativa dos sacerdotes de afirmar a existência de uma religião salvadora.
A crença dos cientistas na neutralidade científica é a mesma da dos fiéis em relação às suas religiões. A necessidade da existência de um ente superior manifesta-se com racionalidades diferentes, mas que procuram aconchegar os mesmos temores humanos. A via para essa tentativa é distinta. Os resultados podem ser diferentes, mas o que se procura, tanto em uma quanto em outra, é a consolidação de uma elite específica. Tanto a elite dos sacerdotes como a dos cientistas procura essa diferenciação no interior da sua própria classe. É importante ressaltar, também, que, apesar dessa "corrida" pelas diferenciações, ocorrem lutas ideológicas, cada qual com seus pressupostos, premissas e verdades.



Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-39512010000100004&lng=pt&nrm=iso


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