O desafio da educação escolar está em ampliar as possibilidades de experiência,
desafiando o aluno a “parar para pensar”.
Luiz Percival Leme Britto*
[...] Falamos de formação de leitor e, por conseguinte, falamos de educação escolar. A escola é lugar próprio de aprender, e de aprender aquilo que não se aprende no trato da vida cotidiana, assim como ler e escrever. Está bem que se pode aprender a ler e escrever fora da escola, mas é na escola que esses conhecimentos e outros, próprios da produção intelectual organizada, encontram espaço para expandir-se e sistematizar-se, principalmente quando se enfrentam temas e conteúdos que transcendem o senso comum.
Aprendemos na escola para fazer coisas fora dela; usamos o que aprendemos na escola para participar da sociedade, compreender e indagar as formas de realização e compreensão da vida, produzir, criar, transformar. E isso significa um processo de intensa interação entre as aprendizagens escolares e as que se adquirem pela ação direta no “mundo lá fora”.
A escola é, portanto, um espaço privilegiado para a reflexão e a organização de conhecimentos e aprendizagens de vida, de aprofundamentos e sistematizações. Isso implica um processo distinto de trabalho, uma maneira mais disciplinada de pensar, analisar, avaliar, e esse processo só tende a crescer à medida que avançam os níveis de escolaridade, de modo que, se o cotidiano tem peso significativo nas séries iniciais, sua relevância é menor quando se considera o ensino médio, momento em que se valorizam conhecimentos mais abstratos, cuja compreensão envolve procedimentos mais elaborados e sofisticados, conhecimentos que não se percebem imediatamente na vida prática.
A escola é, portanto, um espaço privilegiado para a reflexão e a organização de conhecimentos e aprendizagens de vida, de aprofundamentos e sistematizações. Isso implica um processo distinto de trabalho, uma maneira mais disciplinada de pensar, analisar, avaliar, e esse processo só tende a crescer à medida que avançam os níveis de escolaridade, de modo que, se o cotidiano tem peso significativo nas séries iniciais, sua relevância é menor quando se considera o ensino médio, momento em que se valorizam conhecimentos mais abstratos, cuja compreensão envolve procedimentos mais elaborados e sofisticados, conhecimentos que não se percebem imediatamente na vida prática.
Nesse sentido, a leitura é um dos conteúdos escolares em que a articulação entre o sistemático e a assistemático mais se manifesta e merece atenção especial, porque favorece a metacognição – a atividade intelectual autocontrolada, realizada com planejamento e avaliação contínua. Assim, além das leituras que, em função das formas de participação das pessoas nas diversas esferas de sociabilidade imediata, são feitas e aprendidas na vida prática, há formas de ler mais densas, articuladas com o que chamamos de “pensamento especulativo”, isto é, aquele que trata – na feliz explicação de Antônio Houaiss no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa no verbete “especulação” – de “indagar sobre as coisas, o mundo, a vida”, buscando “capturar representativamente um objeto qualquer, utilizando recursos investigativos dessemelhantes – intuição, contemplação, classificação, mensuração, analogia, experimentação, observação empírica, etc. – que, variáveis historicamente, dependem dos paradigmas filosóficos e científicos que em cada caso lhes deram origem”.
Creio que, quando falamos em leitura na escola e de ensinar e aprender a ler, estamos pensando sobretudo nesse tipo de leitura. Daí a insistência no investimento subjetivo do leitor e na valorização de suas escolhas e decisões de caminhos interpretativos. Daí a escolha por textos de literatura, de história, de ciência. Daí a afirmação da ideia tão valiosa de que cabe à escola formar um leitor crítico, autônomo, livre, criativo. Porém, há que se indagar o que quer dizer exatamente crítica, autonomia, liberdade, criatividade. Penso que explorar um pouco esses valores – pode contribuir significativamente para o trabalho de formação e para a realização de ações estruturantes no campo da formação do leitor. Vamos a isso.
Começo com a ideia de liberdade, um conceito valiosíssimos nos tempos atuais e sobre o qual parece haver muitas e distintas compreensões. Já de início, é preciso rejeitar a ideia de liberdade como o correspondente de ausência de limite ou de realização do desejo; a liberdade – entendida como a possibilidade de a pessoa exprimir-se ou agir conforme sua vontade, consciência e natureza – tem seus limites determinados por dimensões biológicas, materiais e históricas.
O sentido e o valor de liberdade são produzidos na história da sociedade e dos indivíduos; não são um a priori, um valor ou fato absoluto, e sim a projeção de uma existência que se conhece e se reconhece em si e nos outros. Todo e qualquer gesto humano ganha sentido na própria constituição da humanidade e somente os seres humanos são por isso, potencialmente livres.
Conforme esse raciocínio, a liberdade não é um absoluto, mas uma condição que se conquista com a determinação dos direitos e com a consciência que a pessoa tem deles, de si, da sociedade e da vida. É algo que se conquista, que se aprende na relação com o outro, sempre na condição concreta da vida vivida. Toda escolha será sempre constrangida pelo que somos e pelos condicionantes sociais que nos formam.
Disso resulta, por exemplo, uma leitura decorrente da “livre escolha” que pode estar condicionada, constrangida por muitos fatores limitantes sem que aquele que a faça tenha consciência disso. Os gostos, as predileções são a expressão de experiências diversas e da incorporação, muitas vezes inconsciente, de valores e padrões alheios.
Igual raciocínio aplica-se ao conceito de autonomia. Assim como liberdade, autonomia não é algo que se tem por decreto. Aceitando o princípio de autonomia como a capacidade de a pessoa se autogovernar e se autodeterminar, segundo uma moral por ela mesma estabelecida, livre de qualquer fator estranho ou exógeno, temos de reconhecer que a autonomia só se realiza efetivamente na medida em que o sujeito se apropria das formas de ser e de fazer no mundo e, reconhecendo-se como sujeito de direito, reivindica para si o poder de tomar as decisões relativas à sua vida.
A autonomia implica conhecimento, discernimento e análise da situação – e isso se aprende. O leitor autônomo não é simplesmente aquele que lê conforme seus desejos, opções, interesses (porque os desejos, opções e interesses podem resultar da ação de fatores exógenos), mas aquele que dispõe de possibilidades de conhecer e controlar esses fatores.
Isso obriga a dizer que a autonomia é necessariamente limitada, de modo que o que se pode é falar em maior ou menor autonomia, conforme a capacidade de compreensão e o conhecimento da pessoa. Uma pedagogia da leitura condizente com esse princípio não partirá do pressuposto de que o leitor é autônomo; ao contrário, entendendo sua limitação, investirá decididamente para que amplie cada vez mais sua autonomia por meio da experiência.
No que concerne à crítica, o raciocínio que venho apresentando tem as mesmas implicações. Para exercer a crítica, isto é, para fazer a análise objetiva de um problema, escapando a esquemas predeterminados, dogmas, preconceitos, etc., a pessoa necessita de um quadro teórico-conceitual e um conjunto de princípios bem estabelecidos. Caso contrário, a crítica confunde-se com predileções e interesses, não contribuindo nem para o desenvolvimento do sujeito nem para a expansão do conhecimento.
Propor a leitura crítica é um convite à indagações e à autoanálise contínua. Tendo em vista que amplia seus referenciais de mundo, seu repertório cultural, seus esquemas de interpretação, o leitor passa a ter maior possibilidade de ler criticamente. É evidente que a crítica pura e totalmente objetiva é uma miragem: o lugar que ocupamos na história e na sociedade sempre implicará a subjetividade inerente ao ponto de vista. Também é evidente que não há um momento apropriado e perfeito para que alguém possa dizer que está pronto para a crítica: tornamo-nos críticos à medida que, na interação com outras pessoas e outras ideais, aprendemos e realizamos a crítica.
Pensemos agora na ideia de criatividade, outro valor caro na concepção moderna de subjetividade. Entendido como a produção do novo, por meio do estabelecimento (ou da ruptura) de relações, implicações, derivações entre objetos ou ideais, criar remete a um campo semântico em que se destaca a inventividade, a inovação, o inusitado. A pessoa criativa seria aquela capaz de produzir, fazer o que ninguém fez ou faz, dizer coisas que ninguém diz ou pensa, de produzir imagens, objetos, artefatos desconhecidos, encontrar soluções impensadas para problemas. Enfim, criativa seria a pessoa de caráter inovador, original, que se distingue pela aptidão intelectual para criar.
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Fonte: Revista Pátio |
Não há dúvida de que há produções criativas que resultam de processos ignorados por quem as faz, assim como há manifestações repentinas de descobertas extraordinárias (Eureka!; insight). Isso não significa, porém, que a criatividade resulte da ignorância ou da sorte. Ao contrário, para produzir a novidade, por meio do estabelecimento (ou da ruptura) de relações, implicações e derivações entre objetos ou ideias, há que se ter o conhecimento dos objetos e das regras de seu funcionamento; disciplina para estudar, indagar e produzir a novidade; capacidade de análise, comparação e avaliação; responsabilidade e compromisso com o produto criado.
A criatividade, portanto, implica atitude diante das coisas, de modo que, para ser criativa, a pessoa tem de conhecer aquilo com que está tratando. Criamos porque conhecemos e, quanto mais conhecemos, mais poderemos criar. E, se só podemos criar com o que sabemos, o objeto resultante de nossa criação estará sempre no âmbito do que conhecemos.
Aplicando esse raciocínio à leitura, podemos dizer que será mais criativo o leitor que mais conhecer e que jovens leitores têm mais criatividade conformada àquilo que já experimentaram e conheceram na vida. Um dos elementos importantes para a criatividade é a experiência. Ela também é importante na constituição da autonomia, da liberdade e da crítica: qualquer indivíduo é o que é em função de sua vida vivida, das coisas que fez e sofreu (as coisas por que passou).
Em sua primeira aproximação, a experiência é a condição do fazer humano. São situações em que o que nos acontece também nos toca e pode ser mais ou menos elaborado e trazido a dimensões da consciência. É razoável dizer que esses momentos são cruciais para o desenvolvimento da crítica, para a afirmação da liberdade e da autonomia e para o estímulo à criatividade.
Uma maneira concreta de formar o leitor crítico, de modo que tenha significado a afirmação de que o “sentido da leitura” resulta da experiência do leitor, é investir em situações em que aflore a necessidade de criar, buscar, criticar. O desafio da educação escolar está exatamente em ampliar as possibilidades de experiência, desafiando o aluno a “parar para pensar”, “a suspender o automatismo da ação”, a reconhecer-se e assumir-se com sujeito da ação. Esse movimento de afastamento do imediato e de recusa do deixar-se ir tampouco é algo que se manifesta espontaneamente.
O maior desafio na formação do leitor está exatamente em produzir um ambiente e um movimento em que, confrontando-se com objetos estranhos ou estranhando os objetos conhecidos, possamos progressivamente ampliar a crítica, a liberdade e a criatividade em nossas ações e escolhas. Liberdade, autonomia, crítica e criatividade – esses elementos tão significativos para caracterizar o leitor – não são o ponto de partida de nossa formação, mas sim pontos de chegada, sempre provisórios e precários.
FONTE:
Pátio Ensino Médio. Grupo A Educação. ano 4, n.15, dez 2012/fev. 2013.p.14-17.
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