30 de outubro de 2013

A liberdade, a crítica e a criatividade na formação do leitor


O desafio da educação escolar está em ampliar as possibilidades de experiência,
desafiando o aluno a “parar para pensar”.



Luiz Percival Leme Britto*


    [...] Falamos de formação de leitor e, por conseguinte, falamos de educação escolar. A escola é lugar próprio de aprender, e de aprender aquilo que não se aprende no trato da vida cotidiana, assim como ler e escrever. Está bem que se pode aprender a ler e escrever fora da escola, mas é na escola que esses conhecimentos e outros, próprios da produção intelectual organizada, encontram espaço para expandir-se e sistematizar-se, principalmente quando se enfrentam temas e conteúdos que transcendem o senso comum.
       Aprendemos na escola para fazer coisas fora dela; usamos o que aprendemos na escola para participar da sociedade, compreender e indagar as formas de realização e compreensão da vida, produzir, criar, transformar. E isso significa um processo de intensa interação entre as aprendizagens escolares e as que se adquirem pela ação direta no “mundo lá fora”.
    A escola é, portanto, um espaço privilegiado para a reflexão e a organização de conhecimentos e aprendizagens de vida, de aprofundamentos e sistematizações. Isso implica um processo distinto de trabalho, uma maneira mais disciplinada de pensar, analisar, avaliar, e esse processo só tende a crescer à medida que avançam os níveis de escolaridade, de modo que, se o cotidiano tem peso significativo nas séries iniciais, sua relevância é menor quando se considera o ensino médio, momento em que se valorizam conhecimentos mais abstratos, cuja compreensão envolve procedimentos mais elaborados e sofisticados, conhecimentos que não se percebem imediatamente na vida prática.



    Nesse sentido, a leitura é um dos conteúdos escolares em que a articulação entre o sistemático e a assistemático mais se manifesta e merece atenção especial, porque favorece a metacognição – a atividade intelectual autocontrolada, realizada com planejamento e avaliação contínua. Assim, além das leituras que, em função das formas de participação das pessoas nas diversas esferas de sociabilidade imediata, são feitas e aprendidas na vida prática, há formas de ler mais densas, articuladas com o que chamamos de “pensamento especulativo”, isto é, aquele que trata – na feliz explicação de Antônio Houaiss no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa no verbete “especulação” – de “indagar sobre as coisas, o mundo, a vida”, buscando “capturar representativamente um objeto qualquer, utilizando recursos investigativos dessemelhantes – intuição, contemplação, classificação, mensuração, analogia, experimentação, observação empírica, etc. – que, variáveis historicamente, dependem dos paradigmas filosóficos e científicos que em cada caso lhes deram origem”.
    Creio que, quando falamos em leitura na escola e de ensinar e aprender a ler, estamos pensando sobretudo nesse tipo de leitura. Daí a insistência no investimento subjetivo do leitor e na valorização de suas escolhas e decisões de caminhos interpretativos. Daí a escolha por textos de literatura, de história, de ciência. Daí a afirmação da ideia tão valiosa de que cabe à escola formar um leitor crítico, autônomo, livre, criativo. Porém, há que se indagar o que quer dizer exatamente crítica, autonomia, liberdade, criatividade. Penso que explorar um pouco esses valores – pode contribuir significativamente para o trabalho de formação e para a realização de ações estruturantes no campo da formação do leitor. Vamos a isso.
     Começo com a ideia de liberdade, um conceito valiosíssimos nos tempos atuais e sobre o qual parece haver muitas e distintas compreensões. Já de início, é preciso rejeitar a ideia de liberdade como o correspondente de ausência de limite ou de realização do desejo; a liberdade – entendida como a possibilidade de a pessoa exprimir-se ou agir conforme sua vontade, consciência e natureza – tem seus limites determinados por dimensões biológicas, materiais e históricas.
     O sentido e o valor de liberdade são produzidos na história da sociedade e dos indivíduos; não são um a priori, um valor ou fato absoluto, e sim a projeção de uma existência que se conhece e se reconhece em si e nos outros. Todo e qualquer gesto humano ganha sentido na própria constituição da humanidade e somente os seres humanos são por isso, potencialmente livres.
     Conforme esse raciocínio, a liberdade não é um absoluto, mas uma condição que se conquista com a determinação dos direitos e com a consciência que a pessoa tem deles, de si, da sociedade e da vida. É algo que se conquista, que se aprende na relação com o outro, sempre na condição concreta da vida vivida. Toda escolha será sempre constrangida pelo que somos e pelos condicionantes sociais que nos formam.
     Disso resulta, por exemplo, uma leitura decorrente da “livre escolha” que pode estar condicionada, constrangida por muitos fatores limitantes sem que aquele que a faça tenha consciência disso. Os gostos, as predileções são a expressão de experiências diversas e da incorporação, muitas vezes inconsciente, de valores e padrões alheios.
      Igual raciocínio aplica-se ao conceito de autonomia. Assim como liberdade, autonomia não é algo que se tem por decreto. Aceitando o princípio de autonomia como a capacidade de a pessoa se autogovernar e se autodeterminar, segundo uma moral por ela mesma estabelecida, livre de qualquer fator estranho ou exógeno, temos de reconhecer que a autonomia só se realiza efetivamente na medida em que o sujeito se apropria das formas de ser e de fazer no mundo e, reconhecendo-se como sujeito de direito, reivindica para si o poder de tomar as decisões relativas à sua vida.
     A autonomia implica conhecimento, discernimento e análise da situação – e isso se aprende. O leitor autônomo não é simplesmente aquele que lê conforme seus desejos, opções, interesses (porque os desejos, opções e interesses podem resultar da ação de fatores exógenos), mas aquele que dispõe de possibilidades de conhecer e controlar esses fatores.
     Isso obriga a dizer que a autonomia é necessariamente limitada, de modo que o que se pode é falar em maior ou menor autonomia, conforme a capacidade de compreensão e o conhecimento da pessoa. Uma pedagogia da leitura condizente com esse princípio não partirá do pressuposto de que o leitor é autônomo; ao contrário, entendendo sua limitação, investirá decididamente para que amplie cada vez mais sua autonomia por meio da experiência.
     No que concerne à crítica, o raciocínio que venho apresentando tem as mesmas implicações. Para exercer a crítica, isto é, para fazer a análise objetiva de um problema, escapando a esquemas predeterminados, dogmas, preconceitos, etc., a pessoa necessita de um quadro teórico-conceitual e um conjunto de princípios bem estabelecidos. Caso contrário, a crítica confunde-se com predileções e interesses, não contribuindo nem para o desenvolvimento do sujeito nem para a expansão do conhecimento.
Propor a leitura crítica é um convite à indagações e à autoanálise contínua. Tendo em vista que amplia seus referenciais de mundo, seu repertório cultural, seus esquemas de interpretação, o leitor passa a ter maior possibilidade de ler criticamente. É evidente que a crítica pura e totalmente objetiva é uma miragem: o lugar que ocupamos na história e na sociedade sempre implicará a subjetividade inerente ao ponto de vista. Também é evidente que não há um momento apropriado e perfeito para que alguém possa dizer que está pronto para a crítica: tornamo-nos críticos à medida que, na interação com outras pessoas e outras ideais, aprendemos e realizamos a crítica.
     Pensemos agora na ideia de criatividade, outro valor caro na concepção moderna de subjetividade. Entendido como a produção do novo, por meio do estabelecimento (ou da ruptura) de relações, implicações, derivações entre objetos ou ideais, criar remete a um campo semântico em que se destaca a inventividade, a inovação, o inusitado. A pessoa criativa seria aquela capaz de produzir, fazer o que ninguém fez ou faz, dizer coisas que ninguém diz ou pensa, de produzir imagens, objetos, artefatos desconhecidos, encontrar soluções impensadas para problemas. Enfim, criativa seria a pessoa de caráter inovador, original, que se distingue pela aptidão intelectual para criar.
Fonte: Revista Pátio
     De onde, então, surge a criatividade? De onde vem e o que a faz? Isso que comumente parece esquecido quando se fala em criatividade. É como se esse movimento surgisse do nada; como se a semente criativa estivesse desde sempre no sujeito e em certo momento se manifestasse. Por isso, com frequência, encontramos, representações de criatividade em que, para exercê-la, não há que se fazer nada, simplesmente esperar que ela se manifeste.
     Não há dúvida de que há produções criativas que resultam de processos ignorados por quem as faz, assim como há manifestações repentinas de descobertas extraordinárias (Eureka!; insight). Isso não significa, porém, que a criatividade resulte da ignorância ou da sorte. Ao contrário, para produzir a novidade, por meio do estabelecimento (ou da ruptura) de relações, implicações e derivações entre objetos ou ideias, há que se ter o conhecimento dos objetos e das regras de seu funcionamento; disciplina para estudar, indagar e produzir a novidade; capacidade de análise, comparação e avaliação; responsabilidade e compromisso com o produto criado.
     A criatividade, portanto, implica atitude diante das coisas, de modo que, para ser criativa, a pessoa tem de conhecer aquilo com que está tratando. Criamos porque conhecemos e, quanto mais conhecemos, mais poderemos criar. E, se só podemos criar com o que sabemos, o objeto resultante de nossa criação estará sempre no âmbito do que conhecemos.
     Aplicando esse raciocínio à leitura, podemos dizer que será mais criativo o leitor que mais conhecer e que jovens leitores têm mais criatividade conformada àquilo que já experimentaram e conheceram na vida. Um dos elementos importantes para a criatividade é a experiência. Ela também é importante na constituição da autonomia, da liberdade e da crítica: qualquer indivíduo é o que é em função de sua vida vivida, das coisas que fez e sofreu (as coisas por que passou).
     Em sua primeira aproximação, a experiência é a condição do fazer humano. São situações em que o que nos acontece também nos toca e pode ser mais ou menos elaborado e trazido a dimensões da consciência. É razoável dizer que esses momentos são cruciais para o desenvolvimento da crítica, para a afirmação da liberdade e da autonomia e para o estímulo à criatividade.
     Uma maneira concreta de formar o leitor crítico, de modo que tenha significado a afirmação de que o “sentido da leitura” resulta da experiência do leitor, é investir em situações em que aflore a necessidade de criar, buscar, criticar. O desafio da educação escolar está exatamente em ampliar as possibilidades de experiência, desafiando o aluno a “parar para pensar”, “a suspender o automatismo da ação”, a reconhecer-se e assumir-se com sujeito da ação. Esse movimento de afastamento do imediato e de recusa do deixar-se ir tampouco é algo que se manifesta espontaneamente.
     O maior desafio na formação do leitor está exatamente em produzir um ambiente e um movimento em que, confrontando-se com objetos estranhos ou estranhando os objetos conhecidos, possamos progressivamente ampliar a crítica, a liberdade e a criatividade em nossas ações e escolhas. Liberdade, autonomia, crítica e criatividade – esses elementos tão significativos para caracterizar o leitor – não são o ponto de partida de nossa formação, mas sim pontos de chegada, sempre provisórios e precários.


* Doutor em Linguística e professor da Universidade Federal do Oeste do Pará.


FONTE:
Pátio Ensino Médio. Grupo A Educação. ano 4, n.15, dez 2012/fev. 2013.p.14-17.


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