30 de junho de 2011

O desconto dos emolumentos na primeira aquisição de moradia

"O ato que assegura o desconto é o de aquisição da primeira moradia, quaisquer que sejam os contratos utilizados para esse fim, seja compra e venda com pacto adjeto de hipoteca, compra e venda com pacto adjeto de alienação fiduciária, promessa de compra e venda, cessão de direitos aquisitivos ou, enfim, qualquer espécie de contrato cuja função seja a compra da primeira moradia, pouco importando a garantia oferecida pelo tomador do financiamento."



por Melhim Namem Chalhub



O art. 290 da Lei 6.015/1973 assegura desconto de 50% nos “emolumentos devidos pelos atos relacionados com a primeira aquisição imobiliária para fins residenciais, financiada pelo Sistema Financeiro da Habitação...” (redação dada pela Lei 6.941/1981).
Embora editada em 1981, essa norma legal está relacionada à materialização do direito fundamental da moradia, assegurado pelo art. 6º da Constituição de 1988, e, portanto, foi recepcionado pela Carta Magna.
Sucede que, apesar de esse desconto estar há muito consolidado na prática, vez por outra invoca-se o art. 39 da Lei 9.514/1997 para questionar esse direito do cidadão.
A Lei 9.514/1997 estabelece as condições gerais do sistema de financiamento imobiliário (SFI) e regulamenta a alienação fiduciária de bens imóveis; nas disposições finais, diz o art. 39 que as normas da Lei 4.380/1964 (que criou o SFH) não se aplicam às operações de financiamento em geral (que são objeto da Lei 9.514/1997); partindo da premissa de que o desconto previsto no art. 290 da LRP destina-se à primeira aquisição “financiada pelo SFH,” mas, considerando que a alienação fiduciária foi regulamentada pela mesma Lei 9.514/1997, argumenta-se que o cidadão não teria direito ao desconto de 50% dos emolumentos se a aquisição da primeira moradia, embora financiada pelo SFH, seja contratada com garantia fiduciária.

Fonte: direitoemdestaque.wordpress

A premissa é falsa e a conclusão, insustentável. Como se sabe, o sistema de garantias reais é composto não só pelas espécies definidas no Código Civil, mas também por inúmeras outras espécies criadas por leis esparsas. Todas essas garantias reais são de aplicação geral, só se admitindo restrição se a lei restringir expressamente.
A alienação fiduciária de bens imóveis é uma das garantias instituídas por lei especial, a Lei 9.514/1997, que dispõe, também, sobre as operações do SFI. Essa lei é composta por dois conjuntos de normas, um deles dispondo sobre a estrutura operacional do SFI e outro regulamentando a alienação fiduciária.
Esses conjuntos são enunciados em dois capítulos distintos, independentes, e a independência das normas sobre a garantia fiduciária deflui claramente da leitura do § 1º do art. 22 da Lei 9.514, que “descola” essa garantia da estrutura do SFI, liberando sua aplicação para além dos limites do SFI, nos seguintes termos:

“§ 1º A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI, podendo ter como objeto, além da propriedade plena:”
A alienação fiduciária, portanto, não é exclusividade do SFI, e seu campo de aplicação veio a ser ampliado ainda mais pela Lei 10.931/2004, que permite seu emprego para garantia das obrigações em geral, abrangendo, obviamente, também os contratos de aquisição da primeira moradia a que se refere o art. 290 da LRP. Veja-se o disposto no art. 51 da Lei 10.931/2004:

“Art. 51. Sem prejuízo das disposições do Código Civil, as obrigações em geral também poderão ser garantidas, inclusive por terceiros, por cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis, por caução de direitos creditórios ou aquisitivos decorrentes de contratos de venda ou promessa de venda de imóveis e por alienação fiduciária de coisa imóvel.”
Efetivamente, a alienação fiduciária é tão somente um contrato de garantia, tal como o é a hipoteca, a anticrese, o penhor, a caução de direitos aquisitivos, entre outros contratos de garantia.
O emprego de uma ou outra dessas garantias não descaracteriza um contrato do SFH e, portanto, não retira o direito de desconto assegurado por lei.
No que tange à alienação fiduciária, embora regulamentada na chamada Lei do SFI, suas disposições encontram-se em capítulo independente, que colocam esse contrato de garantia no sistema de garantias reais do direito positivo brasileiro, do mesmo modo que outras garantias regulamentadas por outras leis especiais, como são os casos da caução de direitos creditórios ou aquisitivos e a cessão fiduciária de créditos; essas garantias são, todas elas, aplicáveis a quaisquer operações, não havendo razão alguma para afastar sua aplicação nos financiamentos de aquisição da primeira moradia.
Anote-se, por relevante, que a lei que regulamentou a alienação fiduciária de imóveis estendeu seu campo de aplicação a todo e qualquer negócio, nada justificando que, por interpretação isolada do art. 39 da Lei 9.514/1997, se prejudique exatamente o cidadão que adquiriu sua primeira moradia, pelo simples fato de a entidade do SFH ter utilizado a garantia fiduciária.
A par da hermenêutica constitucional, que necessariamente orienta a interpretação de todo o sistema legislativo, as regras mais elementares de hermenêutica não admitem a interpretação isolada de determinado dispositivo, como é o caso do art. 39 da Lei 9.514/1997.
O objeto do art. 39 são as normas relativas às condições operacionais dos financiamentos, sobretudo aquelas enunciadas no art. 5o da Lei 9.514/1997, que permite às partes pactuar livremente as condições do financiamento, a taxas de mercado; o art. 39 afasta a possibilidade de livre pactuação nas operações do SFH e visa reafirmar que essas continuam tendo suas taxas são tabeladas e seguindo a regulamentação ditada pelo Banco Central, notadamente em relação à aplicação de recursos captados mediante depósitos de poupança; é somente esse o sentido do art. 39 da Lei 9.514/1997: a reafirmação da aplicação das normas operacionais do Banco Central às operações do SFH, e não a inviabilização do emprego da garantia fiduciária.
Ora, a concessão de um financiamento do SFH com garantia fiduciária não importa em aplicação de normas do SFI, mas apenas de contratação de alienação fiduciária, cujas normas são independentes das normas específicas do SFI e integram o sistema de garantias do direito positivo, aplicável para a qualquer obrigação, seja pecuniária ou não, do SFH, do SFI, de operações bancárias ou entre particulares, tal como dispõe o art. 51 da Lei 10.931/2004.
Além de tudo isso, importa atentar para que o objeto do art. 290 da LRP são os “atos relacionados com a primeira aquisição” de moradia, e não a espécie de garantia constituída para esse fim. O desconto é assegurado para a “primeira aquisição”, que pode ter como garantia a hipoteca, a propriedade fiduciária ou qualquer outra garantia real.
Assim, pouco importando se a garantia do financiamento é a hipoteca ou a propriedade fiduciária, mas se se trata de aquisição da primeira moradia, o mutuário faz jus ao desconto de 50% dos emolumentos.
Em suma, o ato que assegura o desconto é o de aquisição da primeira moradia, quaisquer que sejam os contratos utilizados para esse fim, seja compra e venda com pacto adjeto de hipoteca, compra e venda com pacto adjeto de alienação fiduciária, promessa de compra e venda, cessão de direitos aquisitivos ou, enfim, qualquer espécie de contrato cuja função seja a compra da primeira moradia, pouco importando a garantia oferecida pelo tomador do financiamento.

* Advogado e Professor. Autor dos livros Negócio Fiduciário (4. Ed), Direitos Reais e Da Incorporação Imobiliária (2. Ed), entre outros.

Fonte: ANOREG/BR - Associação dos Notários e Registradores do Brasil



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